"Não seria ousado afirmar que estamos no limite de uma tutela aleatória ou, com a mesma gravidade, de uma jurisdição informada por interesses particulares ou corporativos."

 

No Brasil se observa, nos últimos anos, uma crescente crise de jurisdição com o consequente agravamento da instabilidade do Estado Democrático de Direito e a perda da confiança dos cidadãos no sistema de garantias individuais e coletivas. 

Muito se pode dizer a esse respeito e, talvez, nada seja original. 

Entretanto, há um aspecto até aqui pouco explorado que é o estabelecimento de uma relação dessa crise da jurisdição com o completo desprezo dos magistrados e tribunais aos conceitos que inspiram e orientam a cultura do sistema jurídico de nossa sociedade e da própria ordem constitucional por eles inspirada. 

Está se falado não apenas do respeito ou desrespeito ao direito positivo posto, que vem recebendo questionáveis interpretações, ao sabor de conveniências e interesses de momento. Mais do que isso. O que poderia ser tratado como questão de livre convencimento dos magistrados, ultrapassa esse limite e se coloca como uma afronta aos conceitos inspiradores da ordem positiva, que antecedem o conjunto normativo e são instrumentos orientadores de sua formação. 

Ou seja, seguidamente os julgados não falam linguagens e conceitos que possibilitem um debate compreensível a todos os interlocutores dos conteúdos da dialética processual. Daí decorre uma dificuldade inclusive de formação e composição do devido processo legal. 

Não seria ousado afirmar que estamos no limite de uma tutela aleatória ou, com a mesma gravidade, de uma jurisdição informada por interesses particulares ou corporativos. 

Como ensinou o velho e sempre válido Carlos Maximiliano¹,a Hermenêutica tem como objeto a lei, a Aplicação não prescinde daquela, mas se apresenta como mediação e diagnóstico. Na Aplicação, além da lei, aprecem o Direito, no sentido objetivo e o fato, abrangendo a Crítica e a Hermenêutica. Mas não há como esquecer que na Aplicação há interpretação e aí, como disse Carlos Maximiliano, Interpretar é explicar, esclarecer; dar significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair, da frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém.

Ao longo da metade do século XX, os fundamentos do Estado Democrático de Direito ganharam a estatura de Princípios explícitos ou implícitos das Constituições. Neste sentido o grande jurista português Gomes Canotilho² definiu que os princípios jurídicos fundamentais são aqueles princípios historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional. 

O direito, como a sociedade, não pode ser estático, refletindo mudanças e transformações de sua evolução mas estas, como disse Canotilho, necessitam ser historicamente objetivadas e progressivamente introduzidas na cultura e na consciência social e jurídica.

Essa compreensão explica a crise de jurisdição que vivemos. Há um verdadeiro descolamento da jurisprudência dos tribunais em relação a conceitos doutrinários cultural e socialmente construídos. 

Na verdade o que se percebe não é uma evolução da jurisprudência, mas oscilações pendulares ou até regressivas que, além de insegurança, refletem, com honrosas exceções, uma jurisdição descomprometida com as garantias do Estado Democrático e Social de Direito, seus conceitos iluministas e garantistas. 

Para ser justo e tentar compreender o problema no seu todo é preciso dizer que se trata de um fenômeno que reflete a postura de parte significativa das elites brasileiras que, em determinado período, se mantiveram neutralizadas em sua origem conservadora mas, nos últimos anos, mostraram sua face menos glamourosa, se apresentando, sem máscara, como classe dominante de um País colonial e escravista. 

Mas, para sair da abstração, vamos para um exemplo muito claro do trabalho do nosso próprio escritório que é a questão do Piso Nacional do Magistério. 

Desde a redação que a Emenda Constitucional nº 53/2006 deu ao artigo 206, da Constituição Federal, passou a ser matéria clara o direito dos profissionais da educação à percepção de um piso nacional em suas carreiras. 

Tal matéria se desdobra no artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que dispõe sobre os recursos dos Entes Federados destinados ao Fundo Nacional da Educação Básica e a destinação dos mesmos à remuneração dos profissionais da educação. 

Para regulamentar os dispositivos constitucionais citados foi editada a Lei Federal nº 11.738, de 16 de julho de 2008 que, em seu artigo 2º, § 1º, define de forma muito clara o que é esse Piso, dizendo: 

Art. 1º ....... 
§ 1º O piso salarial profissional nacional é o valor abaixo do qual a União, os Estados, o distrito Federal e os Municípios não poderão fixar o vencimento inicial das Carreiras do magistério público da educação básica, para a jornada de, no máximo, 40 (quarenta) horas semanais
..........”. 

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4167, em sessão de 27 de abril de 2021, decidiu em seu Acórdão que: 

CONSTITUCIONAL. FINANCEIRO. PACTO FEDERATIVO E REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIA. PISO NACIONAL PARA OS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA. CONCEITO DE PISO: VENCIMENTO OU REMUNERAÇÃO GLOBAL. RISCOS FINANCEIRO E ORÇAMENTÁRIO. JORNADA DE TRABALHO: FIXAÇÃO DO TEMPO MÍNIMO PARA DEDICAÇÃO A ATIVIDADES EXTRACLASSE EM 1/3 DA JORNADA. ARTS. 2º, §§ 1º E 4º, 3º, CAPUT, II E III E 8º, TODOS DA LEI 11.738/2008. CONSTITUCIONALIDADE. PERDA PARCIAL DE OBJETO. 1. Perda parcial do objeto desta ação direta de inconstitucionalidade, na medida em que o cronograma de aplicação escalonada do piso de vencimento dos professores da educação básica se exauriu (arts. 3º e 8º da Lei 11.738/2008). 

2. É constitucional a norma geral federal que fixou o piso salarial dos professores do ensino médio com base no vencimento, e não na remuneração global. Competência da União para dispor sobre normas gerais relativas ao piso de vencimento dos professores da educação básica, de modo a utilizá-lo como mecanismo de fomento ao sistema educacional e de valorização profissional, e não apenas como instrumento de proteção mínima ao trabalhador. 

3. É constitucional a norma geral federal que reserva o percentual mínimo de 1/3 da carga horária dos docentes da educação básica para dedicação às atividades extraclasse. 

Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. Perda de objeto declarada em relação aos arts. 3º e 8º da Lei 11.738/2008. 

(ADI 4167, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2011, DJe-162 DIVULG 23-08-2011 PUBLIC 24-08-2011 EMENT VOL-02572-01 PP-00035 RTJ VOL-00220-01 PP-00158 RJTJRS v. 46, n. 282, 2011, p. 29-83) - grifamos 

Portanto, a partir desse julgado não deveria mais haver dúvidas a respeito do conteúdo do dispositivo definidor do Piso do Magistério que é vencimento inicial das carreiras.

Vasculhando a doutrina nacional sobre o conceito de vencimento inicial, passando de Cretella Júnior por Hely Lopes Meirelles, Celso Antônio Bandeira de Mello e tantos outros, encontra-se uma definição bastante clara nas palavras de Dióges Gasprini (Direito Administrativo, Editora Saraiva, 4ª edição, 1995, página 126), que diz o seguinte: 

Os autores têm distinguido, nessa matéria, vencimento, vencimentos e remuneração. Vencimento e vencimentos são expressões próprias do regime estatutário e sempre estão referidas a cargo. Vencimento tem acepção estrita e corresponde à retribuição pecuniária a que faz jus o servidor pelo efetivo exercício do cargo. É igual ao padrão ou valor-de-referência do cargo fixado em lei. Nesse sentido, a retribuição é sempre indicada por essa palavra (vencimento), grafada no singular”. 

Segue o autor citado fazendo a distinção entre o vencimento (no singular) vencimentos (no plural) e remuneração, essas duas últimas palavras definidores de conjunto de vantagens. 

Da mesma forma, buscando os conceitos estampados na lei e constantes do julgado do Supremo Tribunal Federal, merece transcrição o que diz José Cretella Júnior (Curso de Direito Administrativo, Editora Forense, 14ª edição, páginas 425 e 427) sobre carreira: 

Carreira, significa, entre outras coisas, corrida, caminho, estrada, percurso, espaço percorrido, viagem. 
[...] 
Cargo de carreira ou dinâmico, é aquele em o funcionário, embora desempenhando a mesma espécie de serviço, tem possibilidades de ascender gradativamente na escala hierárquica”. 

Apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal e dos conceitos de vencimento e carreira serem incontestes, 14 anos se passaram desde a edição da Lei nº 11.738/2008 e 11 anos desde o julgamento da ADI. Desde lá o Piso, na forma definida, não foi implantado no Estado do Rio Grande do Sul, surgindo um incompreensível espaço para interpretações e reinterpretações, onde não só os gestores públicos como o próprio Poder Judiciário sinalizam a falta de vontade e a intenção de buscar uma forma de não pagar o Piso Nacional do Magistério sobre o vencimento inicial da Carreira.

Em 2014, o Ministério Público do Rio Grande do Sul ingressou com Ação Civil Pública cobrando o pagamento do Piso para os profissionais do Magistério do Estado do Rio Grande do Sul. Nesse processo, antes do julgamento do mérito, foi firmado um acordo para pagamento do Piso pela remuneração total dos servidores, ou seja, contrariando o conteúdo da decisão do Supremo Tribunal Federal que manda pagar sobre o vencimento inicial da carreira. 

Na sequência a Ação Civil Pública foi julgada, pelo Tribunal de Justiça do Estado, procedente no mérito, com a determinação do pagamento do Piso sobre o vencimento inicial da Carreira, seguindo a orientação do STF. 

Mais adiante, em 23 de novembro de 2016, o Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar recurso especial afetado como repetitivo, decidiu, no Tema 911, o que segue: 

A Lei nº 11.738/2008, em seu artigo 2º, §1º, ordena que o vencimento básico inicial das carreiras do magistério público da educação básica deve corresponder ao piso salarial profissional do nacional, sendo vedada a fixação do vencimento básico em valor inferior, não havendo determinação de incidência automática em toda a carreira e reflexo imediato sobre as demais vantagens e gratificações, o que somente ocorrerá se estas determinações estiverem previstas nas legislações locais.
 

Após a decisão do STJ, em 2016, o referido processo encontra-se no Supremo Tribunal Federal aguardando julgamento de um Recurso Extraordinário, razão pela qual o Tribunal de Justiça do Estado mantém sobrestada a Ação Civil Pública e, também, as ações individuais de cobrança do Piso. 

Ao mesmo tempo, o TJRS vem adotando a orientação traçada pelo STJ no Tema 911, julgando ações movidas contra Municípios, sobre a mesma matéria, com entendimento de não há ilegalidade em que o padrão referencial adotado tenha valor inferior ao piso do magistério, desde que os coeficientes, estabelecidos na lei local resulte em vencimento inicial da carreira igual ou maior do o valor do PNM(Apelação Cível nº 70075555482, Quarta Câmara Cível, julgado em 311/01/2018). 

Ou seja, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Estado estão construindo jurisprudência que desconsidera a decisão da ADIn 4167 e os conceitos nela expressos de vencimento inicial e de carreira. 

O postergamento do julgamento do Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal e a negativa de Reclamação para cumprimento da decisão da ADIn 4167, por tantos anos, além de ser uma objetiva negativa de jurisdição, lançam maus presságios sobre o futuro desse direito do Magistério, consagrando no texto constitucional e na Lei Federal. 

Trata-se de um exemplo fotográfico do que é a sociedade brasileira. Todos os dias, ao se ouvir rádios, ver TVs e abrir jornais e redes sociais se encontra um repetido e unânime discurso de que a solução para o Brasil está na educação, uma verdade inconteste, sem deixar de ser um exagero simplificador diante de tantos problemas que o País enfrenta. Para todos, portanto, investir em educação é o caminho que justifica muitas propostas, projetos e intensões de empresários, setores sociais e partidos políticos das mais diversas ideologias. Mas quando o investimento se concretiza através da valorização dos profissionais da educação que, de todas as formas, se dá pela sua digna remuneração, essa prioridade não se realiza, sob os mais variados pretextos e justificativas. Déficit público, estouro no orçamento, teto de gastos, aparecem como argumentos para afastar o pagamento de um direito previsto na Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 

Pior de tudo é que os próprios tribunais, a começar pelo STF, que haviam reconhecido a constitucionalidade e a legalidade do Piso Nacional dos Profissionais do Magistério, passam a encontrar formas para primeiro adiar, depois desidratar a forma de pagamento e, por fim, na prática, negar efetividade a esse direito. 

Dificuldade de compreensão, frustração e negação objetiva ao direito são resultados das oscilações regressivas da jurisprudência na matéria. 

Como se disse no início deste artigo, esse exemplo demonstra que, mais do que desrespeito ao direito positivo, se está diante de uma jurisdição que não reconhece os conceitos da própria coisa julgada que criou para se submeter a interesses conservadores e que sequer sente-se comprometida com o discurso que formalmente faz para pragmaticamente preservar seus próprios interesses. 

As consequências dessa oscilação jurisdicional, como ocorre também em outras matérias, vão bem além do direito ao Piso do Magistério e são autorizadoras, de uma forma ou de outra, na perda de confiança da população no Poder Judiciário e até das investidas autoritárias do Poder Executivo que se atreve a mover campanhas pelo fechamento do Supremo Tribunal Federal. 

¹ Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, Rio de Janeiro, 1994, 14ª edição, páginas 8 e 9 
² Direto Constitucional, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 1989, página 120 
  • Data: 26.05.2022